A falta de patrocínio é um problema enfrentado por muitos atletas brasileiros e, para os atletas transplantados, esse é um obstáculo ainda maior. No Piauí, uma equipe de atletas transplantados tenta driblar a falta de investimento para conseguir participar das Olimpíadas de Transplantados, que irá ocorrer em abril de 2023, na Austrália. O evento visa promover a doação de órgãos mundialmente e incentivar os transplantados a fortalecerem sua saúde através dos esportes.
O professor piauiense Jeferson Prodo é um dos atletas que integra a Liga de Atletas Transplantados do Brasil, um projeto composto por atletas transplantados com o objetivo de participar dos Jogos Mundiais em 2023. Ele revela que a participação dos atletas no evento depende do patrocínio, já que os custos são altos, incluindo passagens aéreas, hospedagem e os equipamentos, como as bicicletas usadas nas provas de ciclismo.
“A nossa contrapartida para as empresas que nos patrocinarem é ter uma associação positiva às causas nobres, além de incentivar à qualidade de vida. Para as empresas, uma pessoa que pratica atividade física adoece menos e falta menos ao trabalho, além de outros fatores. Quando pensam em apoiar grupos sociais específicos, todo mundo pensa em pessoas com deficiência ou com autismo, mas existe uma população, como a nossa, que não está dentro desses grupos e precisa desse apoio”, destaca.
Foto: Assis Fernandes/O Dia
Nas Olímpiadas de Transplantados, Jeferson Prodo pretende competir nas modalidades triathlon, natação e atletismo. Para isso, ele treina seis vezes por semana e já participou de competições locais. Quem vê a rotina pesada de treinos, no entanto, não imagina que, antes do transplante, o professor chegou a pesar 120 kg. Após a cirurgia, Jeferson decidiu mudar o estilo de vida como forma de retribuir a oportunidade de “renascer”. O que ele não esperava era que a pandemia da covid-19 mudaria seus planos. Sem desistir, Jeferson recalculou a rota sempre focando no seu maior objetivo: se tornar um atleta.
"Comecei a me exercitar em casa, levantando pesos com uma garrafa d’água ou uma mochila", conta o professor Jeferson Prodo.
“Quando estava dando meus primeiros passos ao sair da UTI, pensava em como poderia retribuir de alguma forma por estar vivo, por ter uma oportunidade de renascer, e disse que iria me tornar um atleta. Voltei para Teresina, depois do transplante, dois dias antes de fechar tudo na pandemia. Comecei a me exercitar em casa, levantando pesos com uma garrafa d’água ou uma mochila. Depois, decidi caminhar pelo condomínio até que me senti mais seguro para ir para a rua, andando e correndo. Hoje, vacinado com quatro doses, jogo futebol, vôlei e corro em competições”, afirma.
Foto: Arquivo Pessoal
Jeferson espera incentivar outras pessoas transplantadas ou portadoras de doenças crônicas a seguirem seu exemplo e adotarem a atividade física como uma prática diária. “O objetivo não é ficar em primeiro lugar, é mostrar para outras pessoas que são transplantadas ou com doenças crônicas, que o exercício físico te dá qualidade de vida e autoestima. Você poder mostrar e empoderar outras pessoas transplantadas a participarem de competições. Por isso, estou me preparando pra ser o primeiro triatleta transplantado do Piauí”, enfatiza.
A turismóloga Gabriela Noronha também é uma das integrantes da equipe piauiense que embarcará para os Jogos Mundiais para disputar um lugar no pódio. Com foco no triathlon, ela revela que, após passar seis anos na fila por um transplante de fígado, o objetivo principal, além de garantir uma medalha, é celebrar a vida.
Foto: Assis Fernandes/O Dia
“O mundial de transplantados está sendo conhecido agora no Brasil. Eu, como transplantada, não sabia que existia. Depois que transplantei e tive a necessidade de fazer exercício físico, comecei a pesquisar e descobri os jogos. Qualquer pessoa pode participar, a faixa etária vai até os 80 anos, e é bom porque a gente envelhece tendo a motivação para fazer o esporte e conhecer o mundo. Nós somos competitivos e queremos ganhar medalha, mas estamos também celebrando a vida”, destaca.
Gabriela Noronha integrou a equipe brasileira na 22ª edição dos Jogos Mundiais de Transplantados em 2019, na Inglaterra, e ficou em 8º lugar na natação. Nos últimos Jogos Latino-americanos para Transplantados, na Argentina, ela foi a única atleta do Piauí a trazer três medalhas para casa, sendo duas de ouro e uma de bronze. Segundo ela, o foco agora é intensificar os treinos para conseguir um bom desempenho nas próximas competições.
“Eu vou treinar muito mais porque eu sei que tenho condições de levar uma medalha. Eu não nadava, comecei a nadar depois que fiz o transplante. Competi no Mundial com francesas e inglesas que vinham da natação desde criança e ainda fiquei em oitavo, competindo com atletas de mais de 20 países”, conta.
A 23º Olímpiada de Transplantados faz parte do Comitê Olímpico Internacional, organização internacional responsável por organizar e promover as Olímpiadas e Paralimpíadas. A próxima edição dos Jogos Mundiais para Transplantados irá ocorrer em abril de 2023, em Perth, na Austrália.
“Graças a uma família que disse sim à doação de órgãos, estou aqui para contar a minha história”
Segundo dados do Ministério da Saúde, em setembro de 2021, o Brasil tinha aproximadamente 53,2 mil pessoas na fila de espera por um transplante de órgão. A estimativa é de que um potencial receptor fique de 4 horas até 13 meses na lista por um transplante. O tempo de espera, no entanto, depende de diversos fatores, como do órgão a ser transplantado, das características genéticas do potencial receptor e do seu estado de saúde.
Em 2018, o professor Jeferson Prodo foi diagnosticado com hemocromatose, uma doença genética que causa o acúmulo de ferro em órgãos e articulações. No caso do professor, a doença fez com que o fígado ficasse em estado crítico e a sua única chance de sobrevivência foi receber um órgão transplantado. A cirurgia foi realizada em novembro de 2019, em um Centro de Transplante na cidade de Fortaleza.
Foto: Assis Fernandes/O Dia
“Saí daqui muito mal, eu achava que não iria sobreviver, mas chegando a Fortaleza fui abençoado porque uma família disse sim para que eu pudesse continuar vivendo. O transplante é o ultimo recurso terapêutico para que a pessoa tenha uma qualidade de vida melhor. Recebi o fígado de uma mulher de 64 anos, que pela legislação não posso conhecer família, mas graças a essa família que disse sim, estou aqui para contar a minha história”, conta.
Para a turismóloga Gabriela Noronha, a espera foi ainda mais longa. Após cinco anos procurando atendimento médico sem conseguir um diagnóstico definitivo para os sintomas que se assemelhavam a uma dermatite, ela descobriu uma doença autoimune no fígado e precisou passar seis anos na fila de transplante.
"Eu ia morrer sem saber que tinha uma doença autoimune", revela a turismóloga Gabriela Noronha
“Estava com 28 anos quando comecei a sentir os sintomas, comecei a me sentir muito fraca e com muita coceira na pele. Eu estava arrumando as malas para começar um novo trabalho, tinha alugado um apartamento no Rio Janeiro, minha carreira estava em ascensão. Eu sabia que tinha alguma coisa, mas os médicos não sabiam o que era, deram outros diagnósticos, mas ninguém dizia que era um fígado que não prestava mais. Eu ia morrer sem saber que tinha uma doença autoimune, porque o fígado, ou você troca ou você morre”, lembra.
Com cirrose biliar primária, uma doença autoimune que afeta os ductos biliares localizados no interior do fígado, a turismóloga desistiu do novo emprego no Rio de Janeiro e se mudou para Teresina. Aqui, iniciou um tratamento para conseguir estabilizar o seu quadro de saúde e entrar na fila de transplante. Ela lembra que, enquanto esperava pela chance de fazer a cirurgia, viu amigos não terem a mesma sorte e morrerem a espera de um novo órgão.
Foto: Assis Fernandes/O Dia
“Perdi seis colegas jovens e, a cada amigo meu que ia embora, aquilo me desmontava. Por isso, eu digo que quando recebemos o transplante, temos a obrigação de viver a vida. O transplante foi um recomeço da melhor forma possível. Eu optei por viver. Cada um tem a sua história de superação, mas todos foram salvos por uma família que disse sim para a doação”, destaca.
Gabriela recebeu o fígado de um homem de 24 anos, cuja família optou por aceitar a doação de órgãos. Hoje, ela agradece pela oportunidade de continuar vivendo e poder realizar seus sonhos, como o sonho de ser mãe. Após quatro anos na fila de adoção, hoje, ela é mãe do pequeno Gabriel, de apenas dois anos.
"Foi por causa do fígado dele que eu puder continuar vivendo meus sonhos", diz Gabriela Noronha.
“Foi uma família que, naquele momento de mais dor, disse sim para outras pessoas poderem continuar a sonhar. Eu vivo de sonhos, eu sonhei ter um filho e hoje eu tenho meu filho. Sonhei em poder treinar, ir para os jogos e poder falar sobre a doação de órgãos. Sonhei em me mudar para Parnaíba com meu filho para ter qualidade de vida e estou indo. Estou me formando em psicologia. Então, é uma família que deixa que aquele ente querido realize o sonho de outras pessoas, porque foi por causa do fígado dele que eu puder continuar vivendo meus sonhos”, disse, emocionada.
No Brasil, para ser um doador de órgãos, é preciso avisar a sua família sobre a sua vontade. Já que, após a morte, a doação só pode ser feita caso os familiares autorizem, por escrito, a doação de órgãos e tecidos. Os órgãos são doados para pacientes que necessitam de transplante e aguardam em lista de espera. A lista é única, organizada por estado ou região, e monitorada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT).